Concreto de Estacas Hélice Contínua
O objetivo deste artigo técnico é relatar os cuidados com o concreto nas estacas hélice contínua monitorada (HCM), destacando aspectos de especificação de projeto, procedimentos executivos e controle tecnológico.
O concreto representa, em torno, de 60% do custo de uma estaca hélice contínua, sendo o principal responsável pela garantia da integridade e capacidade estrutural das estacas.
Figura 1 - Problema na integridade da estaca HCM devido à má qualidade do concreto.
1- Especificação do traço do concreto - Histórico
As estacas hélice contínua foram desenvolvidas nos EUA e difundidas em toda Europa e Japão na década de 80. Foi executada pela primeira vez no Brasil em 1987. Na metade da década de 90, o mercado brasileiro foi invadido por máquinas importadas, principalmente da Itália. A partir do início dos anos 2000, inicia-se a produção de perfuratrizes no Brasil, expandindo o mercado de hélice contínua no País.
Em 1996, a NBR 6122 - Projeto e execução de fundações apresenta a primeira especificação do concreto para estacas tipo hélice contínua. No seu item 7.8.6.2 descreve:
O concreto utilizado deve apresentar resistência característica fck de 20 MPa, ser bombeável e composto de cimento, areia, pedrisco e pedra 1, com consumo mínimo de cimento de 350 kg/m3, sendo facultativa a utilização de aditivos.
Em 2006, a ABESC (Associação Brasileira das Empresa de Serviços de Concretagem), a ABEF (Associação Brasileira das Empresa de Fundação e Geotecnia) e a ABEG (Associação Brasileira das Empresas de Projeto e Consultoria em Engenharia Geotécnica) apresentaram em conjunto o traço do concreto para estacas hélice contínua (Código HC).
Fator água/ cimento ≤ 0.60; fck ≥ 20 MPa; Pedra 0 (dimensão máx. 12.5 mm); Slump na nota fiscal: 220 ± 30 mm; Consumo mínimo de cimento: 400 kg/m³; A colocação da ferragem na estaca hélice deve ser de no máximo 2 horas após a chegada do caminhão betoneira na obra; % de Argamassa em massa ≥ 55 %; Traço tipo bombeado; Podem ser usados aditivos plastificantes; Permitido o uso de agregados miúdos artificiais conforme a NBR 7211; Especificar na nota fiscal a quantidade máxima de água a ser adicionada na obra considerando a água retida na central mais uma estimativa de água perdida por evaporação.
Em 2010, o traço do concreto Código HC é incorporado pela NBR 6122, cujo Anexo F traz a descrição da sua especificação sem, entretanto, fazer qualquer referência ao código proposto pelas entidades.
Em 2015, novamente a ABESC, ABEF e ABEG reunem-se para discutir os problemas executivos e patologias observadas nas estacas hélice contínua no Brasil. No 8o SEFE (Seminário de Engenharia de Fundações Especiais e Geotecnia) na Mesa Redonda sobre "Gestão, especificação, aplicação e controle do concreto em obras de fundação", as entidades apresentaram um novo traço e especificação técnica para o concreto das estacas hélice contínua (Código HC 30).
Relação água/cimento ≤ 0.55
fck ≥ 30 MPa aos 28 dias
Pedra 0 (4,75/12,5)
Slump na nota fiscal: 220 ± 30 mm
Consumo mínimo de cimento 400 kg/m³
A colocação da ferragem na estaca hélice deve ser de no máximo 2 horas após a chegada do Caminhão Betoneira na obra, respeitando a NBR 7212.
Porcentagem de Argamassa em massa = 55 % [Massa do cimento + Massa dos agregados miúdos] *100/ [Massa do cimento + Massa dos agregados miúdos + Massa dos agregados graúdos].
Exsudação máxima de 4% do volume total de água conforme a ABNT NBR 15.558.
Traço tipo bombeado.
Podem ser usados aditivos plastificantes.
Permitido o uso de agregados miúdos artificiais conforme a NBR 7211.
Especificar na nota fiscal a quantidade máxima de água a ser adicionada na obra considerando a água retida na central mais uma estimativa de água perdida por evaporação.
As notas fiscais de simples remessa devem ter o Código HC 30.
Em 2016, a BornSales Engenharia passou a especificar nos seus projetos de fundação o fck de 30 MPa, restringindo o uso de agregado miúdo artificial. Tal medida gerou muita discussão com as concreteiras locais e as construtoras, visto que, de forma equivocada, a compra de concreto no Brasil é feita pela especificação do fck e não do traço. Outra medida adotada nos projetos de fundação foi a obrigatoriedade da apresentação da Carta Traço, com a respectiva ART do Responsável Técnico.
Em 2019, no dia 30 de setembro, entra em vigor pela ABNT a última revisão da NBR 6122. Nesta revisão, há uma mudança significativa na especificação do concreto para as estacas hélice contínua. Eliminou-se a escolha do concreto pelo fck substituindo-o pela classe de concreto. A classe do concreto deverá atender a classe de agressividade ambiental (CAA), conforme a ABNT NBR 6118. Neste caso, a faixa de variação do concreto passa a ser:
CAA = I e II: Classe de concreto C30, consumo minimo de cimento de 400 kg/m3, abatimento entre 220 e 260 mm, fator a/c < 0,6, diâmetro do agregado de 4,75 a 12,5 mm, teor de exsudação inferior a 4%.
CAA = III e IV: Classe do concreto C40, consumo minimo de cimento de 400 kg/m3, abatimento entre 220 e 260 mm, fator a/c < 0,45, diâmetro do agregado de 4,75 a 12,5 mm, teor de exsudação inferior a 4%.
Para as obras em terrenos localizados na planície costeira, onde há influência da cunha salina no lençol freático e da própria maresia sobre a estrutura, o grau de agressividade é III. Quando há contato direto com água salgada tem-se grau de agressividade IV. Logo, o concreto das estacas hélice contínua no Litoral Catarinense deverá ser da Classe C40.
A especificação dos traços visa obter concreto que garanta qualidade e propriedades como trabalhabilidade, resistência, durabilidade (baixas permeabilidade, porosidade e segregação), levando em consideração as condições particulares de concretagem.
2- Especificação do concreto - Normas Internacionais
As Normas Técnicas Internacionais (BS EN 1536:2010; EuroCode 7) definem as propriedades e características que o concreto deve apresentar no seu estado fresco e no atendimento as especificações requeridas de desempenho.
As exigências de propriedades do concreto a serem atendidas no seu estado fresco são: trabalhabilidade, retenção de fluxo e estabilidade. Ou seja, deve ter uma alta resistência contra a segregação, alta plasticidade e boa coesão, fluir bem e ser adequadamente auto-adensável. No estado endurecido, deve atender os requisitos relacionados à resistência e durabilidade.
Quanto ao teor mínimo de cimento, a BS EN 1536:2010 apresenta a seguinte especificação:
Teor de cimento:
Sem presença de lençol freático > 325 kg/m3;
Com presença de lençol freático > 375 kg/m3.
Teor de finos (diâmetro < 0,125 mm, incluindo adições e cimento):
Agregado graúdo d > 8 mm > 400 kg/m3;
Agregado graúdo d < 8 mm > 450 kg/m3.
Observa-se que quanto menor o diâmetro do agregado utilizado, maior deve ser a quantidade de finos no concreto. Outra observação é quanto a presença do lençol freático, que gera aumento no teor de cimento do concreto.
3- Controle tecnológico
Os concretos destinados à fundação devem seguir a condição A de preparo estabelecida na ABNT NBR 12655. A mistura realizada em central de concreto ou em caminhão-betoneira deve seguir o disposto na ABNT NBR 7212. Os materiais utilizados na fabricação do concreto, como cimento Portland, agregados, água (gelo) e aditivos, devem obedecer às respectivas Normas Brasileiras específicas.
Antes do início da obra deve ser fornecida a Carta Traço, acompanhada da respectiva ART, segundo a ABNT NBR 7212, na qual deverão constar:
a quantidade em massa de cada componente do concreto;
o limite máximo de exsudação (ABNT NBR 15558);
a classe de abatimento (ABNT NBR 8953) e de resistência do concreto; e
a avaliação da reatividade potencial (ABNT NBR 15577-1).
O controle das características do concreto deve abranger:
Ensaio de abatimento (slump-test) conforme NBR NM 67, de cada caminhão betoneira que chegar à obra, imediatamente antes do lançamento;
Moldagem de 4 corpos-de-prova de todo o caminhão betoneira, conforme NBR 5738;
Determinação das resistências à compressão simples, conforme NBR 5739, aos 7 e 28 dias de cura.
O material deve ser liberado para lançamento desde que o resultado do ensaio de abatimento esteja compreendido dentro da variação especificada na dosagem do concreto no projeto.
Na moldagem dos corpos-de-prova, para a determinação da resistência à compressão simples, cada amostra é constituída por dois corpos-de-prova moldados na mesma amassada, no mesmo ato, para cada idade de rompimento.
O ensaio de abatimento (slump test) deve ser utilizado para avaliar a consistência do concreto no estado fresco. No Brasil é comum a verificação da altura e não do diâmetro gerado pelo fluxo do concreto. As diferentes condições de uso e processos de concretagem em estacas depende dos resultados da altura e diâmetro medidos no ensaio, conforme os valores apresentados na tabela 1 (fonte: BS EN 1536:2010).
Tabela 1 - Valores de consistência e tolerâncias para o concreto no estado fresco (BS EN 1536:2010).
A avaliação da resistência à compressão do concreto, normalmente realizada no Brasil, deve ser entendida como uma análise da resistência do concreto no estado endurecido. Ressaltando que as condições de cura no molde e laboratório são diferentes da estaca.
Qualquer ensaio de controle tecnológico a ser realizado no concreto deve estar associado aos registros diários de obra, entre os quais, a ficha de rastreabilidade de cada caminhão.
Tabela 2 - Modelo de ficha para o controle de rastreabilidade do concreto nas estacas.
4- Serviço de concretagem
A ABNT NBR 6122:2019 e o Manual de Especificações Técnicas da ABEF (Associação Brasileira de Empresas de Fundações e Geotecnia) descrevem os procedimentos a serem adotados na etapa de concretagem de estacas hélice contínua.
É fundamental manter uma pressão positiva durante a concretagem (50 a 100 kPa), mantendo-se o trecho final do trado contínuo sempre afogado no concreto lançado na cavidade da estaca. Deve-se também observar o volume de concreto lançado ao longo do comprimento da estaca, procurando preencher o volume nominal da estaca e assegurar o sobreconsumo necessário para a garantia da sua integridade.
É inadmissível o uso de trados com diâmetro na ponta diferente em relação ao diâmetro nominal, bem como, executar movimentos verticais de alívio do trado, por meio de giros no sentido contrário. Em ambos os casos, poderá ocorrer a contaminação do concreto com o solo a ser removido pelo trado. Além disso, o alívio gerado no solo prejudica o desempenho geotécnico da estaca (redução considerável da resistência lateral).
Figura 2 - Detalhe genérico da proibição do uso de trado com diâmetro diferente na ponta.
O serviço de concretagem das estacas é feito simultaneamente à retirada do solo, evitando-se o alívio das paredes e entendendo o perfil geotécnico do terreno em relação à velocidade de retirada do trado e sobreconsumo esperado de concreto.
5- Casos de obra
Militistky e outros (2015) descrevem os problemas mais comuns de segregação (separação entre a argamassa e os agregados graúdos) e exsudação (separação da água do traço das partículas finas) do concreto em estacas HCM:
consumo de cimento inferior aos 400 kg/m3, pela prática de "venda de resistência" em vez de "venda de desempenho";
adição de água no recebimento do concreto em obra, para "ajuste da trabalhabilidade";
uso de cimento fabricado com escórias "vitrificadas;
uso de areia artificial (pó de pedra).
Os autores destacam também os problemas associados aos procedimentos executivos das estacas, denominando de "hélice contínua modificada".
A seguir são apresentados vídeos de casos de exsudação do concreto em estacas hélice contínua, ocasionados pela má qualidade do concreto e/ou do serviço de concretagem:
Fonte: BornSales - exsudação.
Fonte:dicionariogeotecnico - exsudação.
Fonte: BornSales
Fonte: BornSales
6- Considerações finais
O objetivo deste artigo técnico é relatar os cuidados com o concreto nas estacas hélice contínua monitorada (HCM). Trata-se do item de maior custo nas estacas e o material responsável pelo desempenho e integridade.
As Normas Internacionais vem buscando tratar o concreto das estacas moldadas in loco com rigor no desempenho no seu estado fresco e endurecido.
A Prática Brasileira vem tratado o tema com o controle de resistência (famoso "fck"), cujos resultados são válidos somente para o estado endurecido do concreto e sob condição de cura diferente do concreto nas estacas.
A revisão da NBR 6122:2019 trouxe mudanças significativas na especificação do concreto das estacas HCM, relacionando a dosagem à classe de agressividade ambiental.
As empresas concreteiras, executoras de estacas e projetistas de fundações deverão estar cientes das mudanças, pois certamente haverá aumento no custo das estacas, e maior controle do fornecimento e processo executivo de obra.
Referências
ABNT NBR 6122:2019 - Projeto e execução de fundações.
ABEF (2016) - Manual de Execução de Fundações - Práticas Recomendadas.
BS EN 1536:2010 - Execution os special geotechnical works - Bored piles.
BS EN 206:2013(2014) - Concrete - Specification, performance, production and conformity.
MILITITSKY e Outros - Patologia das Fundações. 2a Edição. São Paulo: Ed. Oficina de Textos. 2015.